Abajur Lilás

A consciência nos torna vulneráveis

Por Antônio Roberto Gerin

Abajur Lilás faz parte das consideradas quatro principais obras da dramaturgia de Plínio Marcos. A última a ser escrita, em 1969, quando o autor completava apenas 34 anos. No entanto, esta obra, diferente das demais, não conseguiria estrear, censurada quando os ensaios estavam já em sua fase final. A despeito de várias tentativas, Abajur Lilás só viria a ser liberada para montagem 11 anos depois, em 1980. O texto se tornaria famoso mesmo sem ter-se transformado em espetáculo. Em diversas ocasiões a classe cultural se uniria na defesa do direito de Plínio Marcos de montar seus textos. Foi com muita luta que se conseguiu a liberação de Navalha na Carne, em 1967. Mesmo assim, seria liberado com uma curiosa exigência. Que o espetáculo fosse apresentado à meia-noite. Os constantes problemas com a censura gerariam na vida pessoal de Plínio Marcos alguns transtornos financeiros. Afinal, ele tinha na arte seu ganha-pão, o que o obrigou a buscar alternativas de ganho na televisão e como colaborador em jornais e revistas. Participaria, no papel de Vitório, em 1968, da icônica telenovela da Tupi, Beto Rockfeller, de imenso sucesso. E vendia seus livros em bares e teatros, intitulando-se, sem cerimônia, camelô, aliás, profissão que exerceria em vários momentos de sua vida. Este é o homem irreverente, de criatividade ímpar, que nos revelou uma realidade subterrânea da qual só passamos a tomar conhecimento através das páginas de sua literatura. Plínio Marcos era um ícone cultural, chamava atenção pelo seu estilo de vida, e mais que isso, era aplaudido pela fantástica força humana que emergia de seus diálogos calcados em uma economia de palavras sem precedentes, marco inovador da nossa dramaturgia. “Perfeita economia dramática”, escreveria Bárbara Heliodora. Só para caracterizar sua importância intelectual, cuja sabedoria estava em viver a vida de forma independente, portanto crítica, assim diria Plínio Marcos, ao se negar a receber o prêmio Mambembe, em 1985, por seu texto teatral Madame Blavatsky: “Artista não é cavalo de corrida que tem que chegar em primeiro lugar”. Eis o nobre legado do verdadeiro artista.

Voltando ao texto Abajur Lilás, o cafetão Giro é dono do mocó onde as prostitutas Célia e Dilma recebem seus fregueses. Célia é irreverente e revoltada. Dilma se submete às humilhações por causa do filho, sua razão de viver. Giro, com inusitado faro capitalista, vê o ganho como algo que se baseia na produtividade, portanto quanto mais programas as prostitutas fizerem maiores serão os lucros. Este é o embate subjetivo do texto. O conflito se escancara quando Célia quebra de propósito o abajur lilás, levando o sovina Giro à loucura. Com a chegada de mais uma prostituta, Leninha, o desequilíbrio se acentua, elevando o tom e encaminhando a trama para o seu desfecho.

Em Abajur Lilás, mais do que em outros textos seus, Plínio Marcos escancara a prática da cafetinagem, a comercialização do corpo alheio subjugado a maus-tratos e ameaças. Se no mundo civilizado a exploração do outro é exercida de forma camuflada, no submundo de Plínio Marcos ela se escancara a céu aberto, tipificada na relação em que pisar no corpo do outro é a única forma de enxergar o horizonte. E Plínio Marcos deixa clara esta condição em Abajur Lilás, quando Giro, o perverso cafetão, chancela sua posição de explorador, enquanto Dilma denuncia sua condição de explorada. Diz Giro. “A gente é sócio, porra!”. Dilma replica. “Eu entro com o batente e tu pega a grana”.

Vale anotar que Plínio Marcos repete em Abajur Lilás, com algumas diferenças, a mesma estrutura formal de Dois Perdidos numa Noite Suja. Aqui ele divide o texto teatral em dois atos e cinco quadros, sendo três quadros para o primeiro ato e dois quadros para o segundo. E logo no primeiro quadro Plínio Marcos já desenha o embate entre Giro e Dilma, em que ficam estabelecidas as relações de poder entre o cafetão e a prostituta. O produto destas relações é a exploração materializada em humilhações e agressões físicas e morais.

Sabemos que as dinâmicas de convivência social perpassam por regras morais rígidas, cristalizadas ao longo do tempo. Mas como falar de moral em um cafofo de prostituição? Quando olhamos para um bordel, somos tomados pela certeza de que ali não há regras, tudo é permitido, a moral é apenas um quadro sem rosto esquecido no alto de uma parede. A literatura de Plínio Marcos, e Abajur Lilás em particular, desmentem esta visão. Há regras, há códigos, sim. Que serão fontes de motivação para atitudes e decisões das personagens. Veja o que diz Dilma a respeito de sua profissão. “Sou mulher da vida, mas tenho moral. Comigo é aqui. Se o freguês quiser outros babados, mando falar com tu mesmo, que é bicha”. É prostituta, mas só aceita a cópula dita normal, o papai e mamãe. É o limite. Não podemos esquecer que um bordel é uma microestrutura social, portanto, cabe ali sim a régua moral que medirá quem são os melhores e quem são os piores. Exceto para Giro, para quem a única coisa que não precisa de moral é o dinheiro.

Em dado momento, chegando o embate entre Giro e Dilma a seu limite, Plínio Marcos sente necessidade de fazer entrar Célia, a outra prostituta, companheira de quarto de Dilma. O pólo do confronto se desloca momentaneamente para Célia e Giro, em que Célia, esgrimindo uma habilidade verbal poderosa, leva Giro, descontrolado, ao enfrentamento físico. Dominada por ele, Célia é empurrada para fora do quarto. Plínio Marcos retira Célia de cena só o tempo de finalizar o embate entre Dilma e Giro, onde o filho de Dilma continua sendo o ponto central da discussão. Esta é a estratégia covarde de que se vale Giro para fragilizar sua presa. Giro, ao se retirar, deixa Dilma a sós, embalando sua tristeza na saudade do filho. O primeiro quadro cênico, com seus conflitos, está esboçado. Mas ainda falta entrar em cena o conflito principal.

No segundo quadro, Plínio Marcos mais uma vez joga suas personagens em situação emocional extrema. Ao assim fazer, ele força as personagens à ação bruta, única expressão de resistência para almas tão deformadas na sua essência humana. E Plínio Marcos escolhe Célia como a mensageira da desgraça. É o que ela diz a Dilma, referindo-se a Giro, o cafetão veado, desumanizado pelo dinheiro. “Tu tem medo? Se é isso, deixa pra mim. Faço a bicha com alegria. Antes do veado ciscar, dou-lhe um teco na lata. Mando o puto pro beleléu. Só tu entrar com a grana, o resto é meu”. O crime é um subproduto do desespero quando, em nome da libertação, perde-se de vista sua trágica consequência. E o revólver, na literatura de Plínio Marcos, tem esta função. Age como a alternativa disponível na esperança de se fazer gente. Mas como comprar a “draga” se Célia gasta todo seu dinheiro com bebida? Pois é. Ao oferecer bebida a Célia, Plínio Marcos a coloca à deriva, impotente. Em contrapartida, ao dar um filho a Dilma, Plínio Marcos a acovarda. Eis a triste constatação. Não há saída.

Ainda neste quadro, Plínio Marcos precisa ir além, ele precisa definir o ponto de tensão que irá provocar a explosão da tragédia. Primeiro introduz um conflito lateral, entre Célia e Dilma, para estabelecer o contraponto de personalidades. Traz o escarro de sangue na pia como ponto de choque entre as duas. Uma e outra se acusam de estar doente, e partem para as agressões verbais, interrompidas pela entrada passageira de Giro, que logo se retira, após dar seu recado de opressão. Um corte cênico providencial, pois Giro, ao se retirar, deixa o campo aberto para que o embate entre a revoltada Célia e a apática Dilma prepare a entrada de algo que é muito simbólico na dramaturgia de Plínio Marcos. A tensão se volta para o objeto, concretizado, neste caso, no abajur lilás. Célia joga o abajur no chão, declarando guerra a Giro. O conflito central, finalizando o segundo quadro, enfim entra em cena.

No terceiro quadro, há a amplificação da zona de conflito. É o quadro mais simples do ponto de vista da construção dramatúrgica. Mas essencial na sua função de dar fôlego extra à narrativa, caracterizando-se como o ponto de futuro desequilíbrio. Plínio introduz mais uma personagem, Leninha. É puta nova, recém-chegada, descolada, que ao revelar a Giro seu gosto por leitura, este diz. “Que mania besta essa tua”. Óbvio que Leninha não lê Machado de Assis. Lê a revista Capricho. E a gênese do conflito é o abajur, agora quebrado. Sem abajur, afinal, não pode haver leitura. Leninha encurrala Giro ao exigir um novo abajur. Diz ela. “Já vi com quem vou lidar. Com um enrolador. Prometeu de araque”. Giro estrategicamente se encolhe. Sabe que terá muito trabalho para descobrir quem quebrou seu abajur. É com este objetivo, descobrir o culpado, que se iniciará o segundo ato.

O segundo ato, mais curto, é composto apenas de dois quadros, quarto e quinto. O quarto quadro já inicia com as três mulheres sentadas, em ritmo inquisitório, diante das quais Giro se entrega às suas mais terríveis tergiversações sobre as injustiças de que é vítima, injustiça esta personalizada no abajur quebrado. Com esta manobra cênica, o autor já nos coloca no olho do furacão. E com um desafio. O espectador sabe quem quebrou o abajur.

A introdução da terceira personagem, Leninha, tem a justa finalidade de quebrar o rígido código de honra que reina no quarto. É o desafio proposto por Giro. Prefere manipular três, sabendo que uma delas caguetará. Mas sua intenção vai além. Produzir a desunião entre as putas. Desunidas, cada uma, a seu modo, se submeterá a ele. Esta é a essência do controle que Plínio Marcos tão bem arquiteta. E na busca desse objetivo, Plínio Marcos, no domínio da escrita, prepara o embate já sabendo qual será o desfecho. Mas vai devagar, sob o risco de perder o fôlego antes da hora. Para tanto, primeiro introduz a Dilma e Célia a terceira prostituta, Leninha. Diante da presença da novata, as duas reagem. E Célia decide ir embora. Tudo bem, Giro concorda, mas joga as cartas sobre a mesa. Diz a Célia. “Só que antes paga o que me deve”. “Eu te devo porra nenhuma”. “E o abajur que tu quebrou?” Esta é uma das atitudes cênicas de que Plínio Marcos mais gosta de se valer. Colocar suas personagens em becos sem saída. Plínio Marcos, num gesto cruel, não deixa suas personagens fugirem para a vida.

A questão central, que gira em torno do abajur quebrado, é marotamente resolvida por Giro. Para tanto, o objetivo é oferecer doses cavalares de pressão emocional às suas vítimas. Afinal, sem o fácil recurso do alcaguete, Giro não terá como saber qual das duas, Dilma ou Célia, quebrara o abajur. Cruelmente prepara o terreno. Vai descontar de ambas, um abajur para cada uma. Questionado, argumenta. “Claro, não sei quem foi. Desconto um de cada”. Evidente, eis a estratégia. Incitar o ato de caguetar. Portanto, desunir, desarmar, levar a tortura emocional ao limite. Alguém vai ceder. Eis o que diz Célia sobre a imundície moral do cagueta. “Se tem uma coisa que me dá nojo é cagueta. Tenho mais nojo de cagueta do que de veado”. Ao assim resolver o impasse da quebra do abajur, atribuindo financeiramente a culpa às duas, Plínio Marcos dá a solução para o conflito central, deixando o desfecho pairando no ar, sem a concretude da explosão teatral. Mas eis que entra, no final do quarto quadro, o principal golpe cênico desferido pelo autor.

Ao fim deste quarto quadro, Plínio Marcos retira todas as personagens de cena, ficando, eis o gancho, a cargo de Osvaldo, o brutamontes assexuado, a tarefa de trocar o lençol da cama, exigência da topetuda Leninha. Ao voltar para a cena vazia, com o lençol, Osvaldo destrói o quarto. Sem nenhuma motivação senão arrancar o último grito dramático. Plínio Marcos parece correr um sério risco. O novo impulso dramático se dá por conta da narrativa, através da rubrica, não do drama, através do diálogo. Mais que um risco, uma ousadia. Sem dúvida, diante do quarto todo quebrado, as atitudes de Giro irão às últimas consequências, e assim Plínio Marcos resolve o impasse estrutural de ter solucionado, ainda no quarto quadro, a quebra do abajur. Com o gesto desleal de Osvaldo, reacende, agora na fogueira do inferno, o conflito de poderes.

Mas antes de partirmos para o quinto e último quadro, cabe fazer uma observação sobre o embate entre as três mulheres, deixadas a sós em cena, após a solução do conflito da quebra do abajur, e a consequente retirada de Giro e Osvaldo. A pressão de Célia contra Giro eleva o nervosismo de Dilma e tira Leninha da neutralidade. Célia se torna uma ameaça incontornável. É a última esperança de reverterem a situação. Se não houver uma saída, a desgraça estará plantada. Vemo-nos, neste embate final entre as três mulheres, numa reunião de sindicato, em disputa acalorada entre os que defendem a greve contra o patrão explorador e os que são contra a greve pelo medo de perder o emprego. Eis o fabuloso alcance social do texto, refletindo a consciência social do autor. É trazendo este caldeirão revolucionário, a pretexto de os diálogos de Plínio Marcos proferirem muita gíria e palavrão, além de insinuação sexual, que Abajur Lilás viria a ter tantas dificuldades com a censura em plena vigência do AI-5. E a cena final, acima já mencionada, descrita em rubrica, é estupidamente icônica, quando o capanga Osvaldo, ele próprio, destrói o quarto, semeando sua possibilidade de praticar, no futuro, a maldade que lhe é inerente. Enfim, a atitude de Osvaldo destrói toda possibilidade de libertação. É a mão pesada e injusta do dominador.

O quinto quadro se inicia, como é exigido, em alta voltagem dramática. As três mulheres estão agora amarradas, sentadas cada uma em sua cadeira, diante delas um Giro disposto a arrancar a todo custo a confissão ou a delação. Eis que Plínio Marcos, trazendo os terríveis ecos da ditadura militar, em pleno ano de chumbo de 1969, nos coloca diante dos horrores da tortura. A primeira vítima é Dilma. Mas, para exaspero de Giro, Dilma se mantém inquebrantável. A questão agora não é só saber quem quebrou o abajur, e, sim, o quarto. Submetida à tortura do cigarro e do alicate, Dilma desmaia. Trazendo mais uma vez para a cena uma de suas marcas literárias, atribuindo sentimentos próprios a outrem como estratégia de manipulação e conquista de poder, Plínio Marcos coloca a sombra de Osvaldo por trás de toda esta infame tragédia. À frente do horror está sempre Giro, vestindo a casaca surrada do injustiçado, quando repete suas icônicas e mascaradas lamentações, colocando-se no altar da bondade. Diz. “Dei amizade. Recebi coices”. Evidente, na sua covardia, vira-se para a mais vulnerável, Dilma. Culpa-a, não por ter quebrado o abajur, mas por não ter delatado a culpada. Deu amizade, recebeu coice, esta é a camada subjetiva que justificará seu horrendo ato. Precisa, antes de tudo, da cagueta. Esta é a motivação destrutiva do código de honra, atitude de nobreza que não pode existir em seus domínios.

Mas o incansável Plínio Marcos continua a manipular os polos de tensão. Rearranja o conflito, voltando-se agora para Leninha, o elo frágil, recém-chegada ao cafofo, portanto, sem ter tido o tempo de construir uma relação de lealdade, diga-se, de classe, com as outras duas companheiras de quarto. Ao torturar primeiro Dilma, Plínio Marcos antecipa em Leninha a expectativa da dor, fragilizando-a. O próximo passo é apresentar a Leninha o instrumento fatal de tortura, o famigerado pau de arara. Diante deste instrumento, Leninha esmorece e delata, quebrando assim o rigoroso código de honra do submundo. Está, desta feita, cenicamente arranjado o encaminhamento para o desfecho. A revolucionária está delatada.

Interessante atentar para o discurso farisaico de Giro, um empresário do sexo que se coloca paternalmente diante de suas protegidas que ele explora, subtraindo-lhes despudoradamente a autoestima. Mesmo as que reagem não têm certeza da vilania do discurso que ouvem. Há na retórica do algoz uma sombra escura que não deixa ver a verdadeira face do engodo. A inexistência do sujeito para quem Giro direciona seu discurso dá a ele a santidade do protetor injustiçado. Esta cruel dimensão no significado das relações humanas é o que de melhor Plínio Marcos sabe manusear com sua habilidade de autor. Ele revela o ser humano não para o outro, mas para si mesmo. Ali, no cafofo, cada uma das mulheres tem consciência de sua miserável condição. No entanto, ao ganharem esta consciência tornam-se vulneráveis.

Neste diapasão, a crueldade do desfecho da obra não se atém à ação. Vai além, no discurso final de Giro, antes de ele sair de cena. É como se ele trancasse, com uma grossa parede de concreto, qualquer possibilidade de redenção. O não existir é que possibilita a razão desumana de ser. Não há alma. Há só o corpo. E no corpo, o lucro.

Em suma. Em que pese a exuberância de Dois Perdidos numa Noite Suja, é em Abajur Lilás que Plínio Marcos encontra sua mais verdadeira dramaturgia, e isto se deve a ter ele se conectado de forma ampla e consciente com o mundo que o cercava. Talvez seja nesta obra que Plínio Marcos tenha-se mostrado por completo, o Plínio das docas de Santos e o Plínio dos porões da ditadura. Deste encontro de realidades formou-se esta bela obra prima. A suntuosa identificação do artista com o seu tempo.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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