A Bela da Tarde

Seriam amor e sexo faces da mesma moeda?

Por Antônio Roberto Gerin

Todos nós sabemos que a vida se manifesta em infinitas formas, mas que, geralmente, somos conduzidos a viver da forma que nos é determinada como a mais correta e a mais aceitável, moral e socialmente. Conformamo-nos em sermos réplicas, mesmo que dentro de nós exista uma individualidade difícil de ser domada. Assusta-nos ter que lidar com os conflitos que nos habitam e nos atormentam, afinal, eles insistem em nos arrastar por caminhos perigosos. E aí? Ceder ou não ceder aos nossos mais verdadeiros impulsos?

O belíssimo filme A BELA DA TARDE (101’), de Luis Buñuel, França (1967), vem colocar estas questões para o espectador, sem reticências. O filme contrapõe o que é tido como normal a uma situação de ousadia, onde a normalidade idealizada passa a ter o gosto delicioso da transgressão. Só que sair do quadrado confortável e seguro é nos lançarmos numa zona de turbulência e riscos, cujo preço pode ser muito alto, tão alto que não vamos ter condições de pagar. A nossa Bela da Tarde que o diga.

Séverine, encarnada pela exuberante Catherine Deneuve, é mulher bela e ociosa, amparada por um casamento de sonhos, com um homem que lhe oferece a perfeição, mas uma perfeição tediosa, e mais, uma perfeição que não sacia. O maridão Pierre (Jean Sorel) é o príncipe que Séverine, e tantas mulheres, gostariam de guardar num armário para usar em ocasiões especiais. Mas o que fazer enquanto o príncipe estiver trancado no armário? Ora, o quiserem! O que desejarem. O que sonharem. Façam o certo ou o errado, mas façam!

Séverine partiu para uma solução radical, ou surreal, à la Buñuel. Arranjou um amante caliente? Nada disso. É pouco. Tornou-se prostituta vespertina de um sofisticado bordel clandestino. Isso mesmo. Duas vidas. A clandestina, glamourosa e arrebatadora, injetando felicidade e amor na vida oficial, portanto, o equilíbrio exato entre esbofetear o rosto da perfeição e, logo mais à noite, beijá-lo. Só que Séverine, caro espectador, entrou por um lado obscuro da vida, aquele lado que é dominado pelo sexo que traz em sua bagagem as obsessões e as carências humanas. Então, é quando o destino chega e aponta as fragilidades. Numa fração de segundo, ele tira o sossego e o controle da prazerosa clandestinidade. E tudo, como diria o poeta, vira uma merda. Ou como sussurraria a vizinha fofoqueira, bem feito!

Será que devemos mesmo analisar o filme? Dissecá-lo? Será que devemos mesmo tentar descobrir as razões que levaram Séverine ao bordel? É necessário mesmo discutir a personagem do ponto de vista da sua escolha? Ao levantar hipóteses, não estaríamos nós enquadrando? Limitando? Simplificando a obra-prima de Buñuel? Vamos fazer o seguinte. Só um parágrafo, tudo bem?

Especulemos. Teria Séverine apenas tido a coragem de seguir o fluxo carnal dos seus mais recônditos desejos? Teria o abuso na infância, possibilidade esta trazida por rápidos e incisivos flashbacks, a capacidade de detonar, a partir do ponto de vista do espectro da normalidade social, os desvios de conduta da personagem? Ou seria a escolha apenas motivada por um casamento sexualmente entediante, à la Madame Bovary? Afinal, ambas têm como marido entediante um médico ocupado. Sem contar que os sonhos de Séverine a levam para o século XIX, em suntuosas carruagens ocupadas outrora, provável, pela sexualmente inquieta Madame Bovary… Stop!

Caro espectador, a responsabilidade por captar os movimentos sutis da personagem que a encaminharam para um tipo de vida arriscado, mas do qual ela tirava prazeres reais, nada oníricos, é sua. E mesmo que Buñuel misture realidade com sonhos, com a intenção de confundi-lo, não caia na conversa deste hábil diretor. Pelo contrário. Mantenha os pés firmes no real e verá escancarada a finalidade social do casamento como uma instituição que pressupõe os desvios. Se pressupõe, esta conclusão poderá levá-lo, escandalosamente, a admitir que os desvios são normais. Se são normais, não são desvios, são apenas mais uma escolha! E, neste caso, apesar da tragédia, Séverine teve o direito de fazer a sua escolha. Mesmo que na escolha veio embutido o erro. Mas como é que ela ia saber?

Clique aqui para conhecer, em Assisto Porque Gosto, meus textos teatrais.

Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

Deixe um comentário