Vassa Geleznova

Por Antônio Roberto Gerin

Vassa Geleznova é uma peça de teatro escrita (e reescrita) pelo dramaturgo russo Máximo Górki, portanto, um texto que possui duas versões, situação esta rara na literatura. A primeira versão data de 1910, época pré-revolucionária, em que as primeiras tentativas de implantar a revolução socialista na Rússia haviam fracassado. Depois Górki voltaria a reescrever o mesmo texto, agora em 1936, conseguindo terminá-lo um mês antes de sua morte. Esta versão seria encenada, pela primeira vez, em Moscou, ainda no mesmo ano, em outubro de 1936. Não só pela distância no tempo, já que vinte e seis anos separam uma versão da outra, tampouco pelos momentos históricos, tão distintos, o que se pode dizer é que as duas versões são tão diferentes, inclusive o protagonista, que não cabe qualquer tipo de comparação entre as duas obras. Aliás, o ato de comparar, que poderia ser um referencial construtivo, acaba, na maioria das vezes, sendo pernicioso, e o é ainda mais quando se trata de produtos artísticos. Neste caso, a leitura de que trata esta resenha refere-se à segunda versão, com tradução, para a língua portuguesa, de Eugênio Kusnet e Fernando Peixoto, em 1967.

Máximo Górki foi um revolucionário de primeira hora. Nasceu pobre, vagou pela Rússia czarista, foi preso várias vezes, viu de perto a opressão ao povo russo, levada a cabo por uma estrutura de Estado corrupta e uma burguesia aproveitadora e inepta. Por sua militância e pela força de sua escrita, voltada a uma leitura crítica e lúcida das condições sócio-econômicas de seu país, Máximo Górki acabou se transformando num dos mais festejados intelectuais russos das primeiras décadas do socialismo soviético. Era amigo pessoal de Lênin, que via em Górki o “anunciador de tempestades”. A despeito de tudo, independente do que se pode discutir de ideologias e posições políticas acertadas ou equivocadas, o que sobra de Górki é sua genialidade, expressa numa das maiores obras primas do teatro mundial, “Os Pequenos Burgueses”.

Vassa Geleznova é uma empresária do ramo do transporte marítimo. Tinha no marido um homem inepto, beberrão e devasso, que estava prestes a sofrer um processo judicial por abuso de menores. Vassa via neste processo a hecatombe moral e social da família. Friamente ela aconselha o marido a se suicidar, como a única forma de livrar a todos da vergonha. O que Górki faz é aproveitar-se de uma trama simples e familiar, em que estão envolvidas personalidades múltiplas e opostas, para discutir o porvir de uma nova Rússia, livre da opressão, do parasitismo e da corrupção. Estabelecer o contraponto deste desenho cabe, de um lado, à matriarca, Vassa Geleznova, burguesa e conservadora, e, do outro, à sua nora, Raquel, revolucionária e paladina dos novos tempos. Só que Górki não poupa ninguém. Nem a insensível teimosia de uma, tampouco a ilusão ideológica da outra. A diferença é que Vassa representa o que é, e Raquel, o que pode vir a ser.

Enfim, os tempos sempre serão incertos, já que o homem transfere para as relações sociais e políticas aquilo que lhe é inerente, que é justamente a sua imprevisibilidade. Mas uma coisa é certa. O homem sempre buscará o melhor para si, a que chamamos de mudança, e nesta busca por mudança ele sempre encontrará alguém que se oporá a ele, acintosamente. Eis a interminável dialética. Seja o que for, em Vassa Geleznova, Górki representou um momento único na história russa, transformando o que ele próprio viveu e defendeu em pura obra de arte.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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