Salomé

Por Leivison Silva

Salomé é uma tragédia em ato único, subdividida em quatro cenas. Escrita originalmente em francês, em 1891, por Oscar Wilde (1854-1900), para ser encenada pela grande atriz francesa Sarah Bernhardt (1844-1923), Salomé teve sua primeira edição publicada em 1893. No entanto, Sarah não pôde encená-la de imediato, pois a obra fora proibida de ser apresentada por ser considerado ilegal representar personagens bíblicos no teatro. A peça só foi liberada para estrear nos palcos franceses em 1896, ano em que Oscar Wilde se achava na prisão, na Inglaterra. Oscar Wilde havia se envolvido com o jovem poeta Alfred Douglas (1870-1945), o responsável por traduzir Salomé para o inglês e cuja edição ganhou as famosas ilustrações de Aubrey Beardsley (1872-1898), em 1894. Esse envolvimento com o filho do Marquês de Queensberry viria a dar muitas dores de cabeça a Oscar Wilde. O texto Salomé ainda serviu de base para o libreto da ópera homônima composta por Richard Strauss (1864-1949), cuja estreia se deu em 1905, em Dresden.

Salomé se baseia numa famosa passagem do Novo Testamento, que é relatada tanto no Evangelho de Mateus quanto no Evangelho de Marcos. Trata-se da história da execução do profeta João Batista, chamado de Iokanaan na peça.

A ação começa com alguns soldados e servos de diversas nacionalidades observando a lua no terraço do palácio de Herodes Antipas. Dentre eles, destacam-se o pajem da rainha Herodias, e Narraboth, o sírio, capitão dos guardas. Narraboth compara a lua à princesa Salomé, por quem é apaixonado, enquanto o pajem da rainha aconselha-o a não olhar muito para a princesa da Judeia. Ouve-se então a voz de João Batista. O profeta encontra-se dentro de uma cisterna, de onde grita suas profecias e imprecações, despertando os mais variados sentimentos naqueles que o escutam.

Salomé surge então no terraço, perturbada, fugindo dos olhares inconvenientes que Herodes Antipas, Tetrarca da Judeia, seu tio e padrasto, lançava-lhe durante o banquete dado aos embaixadores de César. Iokanaan profetiza a vinda do Filho do Homem, despertando a curiosidade de Salomé em conhecer aquele homem que dizia coisas tão terríveis sobre sua mãe, Herodias, e que era temido pelo próprio Herodes. Apesar das recomendações dos servos e da hesitação dos soldados, Salomé exige que tragam Iokanaan à sua presença, chantageando emocionalmente Narraboth, que acaba por lhe fazer a vontade.

Iokanaan é trazido para o terraço, onde sente a presença do anjo da morte rondar o palácio, chegando mesmo a ouvir o rumor de suas asas. Diante da figura singular e misteriosa do profeta, Salomé é tomada por uma paixão fulminante. Ela passa a desejar ardentemente Iokanaan, que, no entanto, a despreza, chamando-a de “filha da Babilônia” e “filha de Sodoma”. Vendo a insistência de Salomé em beijar a boca de Iokanaan, Narraboth, desgostoso, comete suicídio. Iokanaan amaldiçoa Salomé e volta para a cisterna. Antes que os soldados possam retirar o corpo de Narraboth do terraço, entram em cena Herodes Antipas, Herodias e toda a corte.

Herodes escorrega no sangue de Narraboth, tomando isso por um mau agouro. Herodias, extremamente irônica, faz pouco das crendices do marido. Herodes afirma ainda estar sentindo um vento frio sobre o palácio, como o bater de grandes asas, e Herodias continua a ridicularizá-lo. Herodes então convida Salomé a se aproximar, mas esta se mantém esquiva. Iokanaan volta a praguejar, profetizar e ultrajar Herodias de dentro da cisterna, o que deixa a rainha profundamente irritada.

Ignorando as queixas de Herodias, o Tetrarca da Judeia ordena que Salomé dance para ele. A princípio, Salomé se recusa, mas diante do juramento que Herodes faz de lhe dar qualquer coisa que ela pedir, até mesmo a metade do reino, Salomé aceita dançar. Herodias tenta demover a filha desse intento, mas é inútil. Salomé executa então a dança dos sete véus, em êxtase, à borda da cisterna na qual está aprisionado Iokanaan.

Ao fim da dança, Herodes, satisfeito, pergunta a Salomé o que ela deseja como recompensa e fica absolutamente chocado quando ela pede que lhe tragam, numa grande bandeja de prata, a cabeça de Iokanaan. Herodias aprova o pedido da filha e aproveita a oportunidade para tripudiar o marido. Agora é Herodes, temendo que aconteça uma desgraça caso Iokanaan seja morto, quem tenta fazer Salomé mudar de ideia, oferecendo-lhe tesouros raros e valiosos, mas Salomé mantém-se firme. Herodes não tem outra saída senão atender, contrariado e assustado, ao pedido da enteada.

Herodias retira então o anel da morte do dedo de Herodes e o entrega ao executor, que desce à cisterna, decapita Iokanaan e traz a cabeça do profeta numa grande bandeja, conforme pedira Salomé. Num êxtase de necrofilia, a princesa da Judeia proclama seu amor rejeitado pelo profeta e beija voluptuosamente os lábios da cabeça decepada de Iokanaan, para alegria de Herodias e horror de Herodes, que se retira enojado do terraço. Antes que o pano caia, Herodes volta à cena e ordena que seus soldados matem Salomé.

Salomé é uma lírica e brilhante acareação entre a sensualidade do paganismo e a humildade devota do incipiente Cristianismo. “Vai chegar o Senhor! Está próximo o Filho do Homem. Os centauros ocultam-se nos rios e as ninfas, deixando os ribeiros, deitam-se nas florestas”, profetiza Iokanaan, na Cena II. Essa fala, escrita no final do século XIX, lembra uma velha tradição cristã, segundo a qual, quando o anjo avisou os pastores de Belém do nascimento de Jesus, os oráculos se calaram e um gemido profundo, ouvido em toda a Grécia, anunciou que Pã morrera. As ninfas choraram nos bosques, desoladas, e toda a realeza do Olimpo fora destronada, passando a vagar no frio e nas trevas.

Oscar Wilde, como tantos escritores ocidentais, provavelmente devia lamentar, no íntimo, o desaparecimento da bela mitologia que embalou a juventude do mundo, substituída pela dura verdade cristã, em sua maioridade. Um indício é a maneira como escreveu Salomé. Ao nos contar novamente a história do amor carnal da princesa da Judeia pelo profeta incumbido por Deus de preparar o caminho para que Jesus cumprisse sua missão redentora na Terra, Wilde presenteou a humanidade com um texto que exala poesia, sangue e pecado, uma obra prima do sadismo, enfim, que vale muito a pena ser lida.

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Autor: Leivison Silva

Ator da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto. Cantor lírico formado no Curso Básico de Canto Erudito da Escola de Música de Brasília, com realização de trabalhos no teatro, no cinema e na música. Iniciado na arte da palhaçaria – seu palhaço chama-se Josephyno.

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