O Santo Inquérito

Por Leivison Silva

O Santo Inquérito é uma peça em dois atos, escrita em 1966, por Dias Gomes (1922-1999). A primeira montagem da peça aconteceu no mesmo ano, no Teatro Jovem, no Rio de Janeiro, e teve direção de Ziembinski (1908-1978). O Santo Inquérito conta a história do calvário de Branca Dias, vítima da Inquisição portuguesa no Brasil Colônia, no século XVIII, época em que cerca de quarenta mulheres brasileiras foram queimadas vivas pelos supostos crimes de bruxaria e heresia. Segundo historiadores, Branca Dias realmente existiu. Ela seria uma moça nordestina de rara beleza que foi condenada à fogueira por seus hábitos não convencionais. Desde então, entrou para o imaginário nacional como uma espécie de Joana D’Arc brasileira.

O enredo de O Santo Inquérito se passa em 1750, na Paraíba. Branca Dias, filha de Simão Dias e noiva de Augusto Coutinho, é uma moça letrada, porém ingênua, que vivencia sua fé sem fanatismo ou pompa, sentindo a presença Deus nos fenômenos da natureza e nas coisas simples da vida. Após salvar o padre Bernardo da morte por afogamento, Branca passa a ser assediada por esse mesmo padre que, argumentando ter o dever de salvá-la, deturpa e se aproveita da pureza de Branca, de sua amizade desinteressada e de suas atitudes espontâneas para tentar, sem sucesso, fazê-la se dobrar aos dogmas da Igreja Católica. Tais subterfúgios, porém, nada mais são que um movimento desesperado do padre Bernardo para aplacar o desejo proibido que ele sente por Branca.

Ao longo da angustiante narrativa, Dias Gomes vai mostrando a maneira como os atos e palavras de Branca são destorcidos pelo padre Bernardo e pelo Visitador do Santo Ofício, que dão a esses atos e palavras uma conotação completamente diferente da essência que Branca lhes imprimiu originalmente. A protagonista da peça tenta, a todo custo, convencer seus algozes da boa fé de suas intenções, mas cada tentativa sua só faz muni-los ainda mais de argumentos contra ela, já que eles só veem o que querem ver. Até mesmo o fato de o avô de Branca ser um cristão-novo, convertido à força para escapar à Inquisição em Portugal, é usado contra ela durante o julgamento feito pelo Visitador do Santo Ofício. Por tabela, Simão e Augusto, pai e noivo de Branca, respectivamente, são arrastados nesse turbilhão de intolerância e hipocrisia, um deles pagando com a vida por ter tido a dignidade de se recusar a confirmar as acusações injustas que pesavam sobre Branca.

O tema central de O Santo Inquérito é o cerceamento do direito a que o ser humano tem de ter ideias e opiniões próprias e de poder expressá-las e vivenciá-las livremente. Dias Gomes se utiliza de flashbacks e da quebra da quarta parede para contar essa história, fazendo Branca falar e argumentar diretamente com a plateia, para tentar ganhar a simpatia do público. Nesse aspecto, O Santo Inquérito lembra o teatro didático proposto por Bertolt Brecht (1898-1956).

Em O Santo Inquérito, Dias Gomes brilhantemente mostra o efeito danoso que os ruídos de comunicação podem causar, já que a comunicação, a priori um elo entre as pessoas, não raro é transformada numa fonte de mal-entendidos e de abusos, muitas vezes pelas mãos de quem diz defender a mensagem de Cristo, como no caso da peça, mas que, cuja mesquinharia e pensamento estreito deturpam e destroem tudo o que consideram ser uma ameaça ao status quo que lhes é conveniente. Qualquer semelhança com o Brasil de 2018, em que vivemos uma verdadeira caça às “bruxas”, infelizmente não é mera coincidência.

De qualquer forma, temos registrado nos anais da nossa dramaturgia esse magnífico texto teatral, uma das grandes peças modernas do teatro brasileiro, que o genial Dias Gomes deixou de herança para a pátria amada. Vale muito a pena a leitura!

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Autor: Leivison Silva

Ator da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto. Cantor lírico formado no Curso Básico de Canto Erudito da Escola de Música de Brasília, com realização de trabalhos no teatro, no cinema e na música. Iniciado na arte da palhaçaria – seu palhaço chama-se Josephyno.

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