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O silêncio que narra

Por Antônio Roberto Gerin

 O filme ROMA (135’), do diretor mexicano Alfonso Cuarón, México (2018), já recebeu muitos e esfuziantes aplausos desde que foi lançado, em agosto de 2018, levando o Leão de Ouro em Veneza, e provável levaria a Palma de Ouro se Cannes tivesse posto de lado a incompreensível rabugice de negar a inscrição do filme por se tratar de um netflix. E agora Roma aparece com dez indicações ao Oscar, com chances de levar algumas estatuetas, dentre elas a de melhor filme. Se a Academia quiser mesmo pisar no calcanhar do presidente norte-americano Donald Trump, por causa da questão do infame muro, ela, com certeza, dará o prêmio ao mexicano Roma. E devemos ainda colocar na conta dos aplausos o insuspeito entusiasmo dos críticos e periódicos especializados em cinema, alguns elevando Roma à condição de melhor filme produzido em 2018. Este é o invejável cartão de visita deste belo filme chamado Roma.

Do que trata afinal este filme para ser assim tão festejado? Fala do cotidiano de uma família classe média, num bairro chamado Roma, cidade do México. Portanto, uma proposta aparentemente simples. Narrar a vida de uma família, com suas felicidades e suas infelicidades. Como já dizia Leon Tolstói em uma de suas obras primas, “Ana Karenina”, já no primeiro parágrafo, “Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma a sua maneira.”. Por se tratar de um filme com fortes cores autobiográficas, baseado nas memórias pessoais do próprio diretor, que também assina o roteiro, fica difícil definir o grau de infelicidade de uma família que, a despeito de tudo, mantém-se de pé, firme e forte. Talvez seja porque Cuarón despeja afeto para falar da sua história. E, neste sentido, ele nega Tolstói. Uma família pode conviver com felicidades e infelicidades, numa sequência aleatória, e a intensidade dos sorrisos e das dores vai depender de como se enxerga cada momento. Na verdade, Cuáron não se abala com a infelicidade. Mesmo naqueles momentos de pura selvageria emocional, que culminam com o abandono das figuras masculinas na relação de marido e pai, ele mantém o otimismo. Na essência, o filme trata do abandono frente à necessidade de se continuar a vida.

É a partir de Cleo, a maravilhosa atriz Yalitza Aparicio, indicada, com toda justiça, ao Oscar de melhor atriz, que vemos a historia da família ser contada. Ela é a cereja do roteiro. É a narradora silenciosa, que tudo controla. É a corda tênue e vigorosa conduzindo o cotidiano da família. É do seu silêncio, do seu caminhar inseguro, descendo e subindo escadas, lavando a garagem e levando as crianças para a escola que exala toda a poesia que impregna o filme do começo ao fim. E a personagem ganha força quando sua trajetória de mulher abandonada se cola com a da patroa, que vê seu marido ir embora, desaparecer, e ela tendo que lutar para preservar os filhos, impondo-lhes a mentira da viagem do pai. Estas duas mulheres, socialmente opostas, com uma história em comum, se convergem na realidade do feminino. Como bem define Sofia (Marina de Tavira), a esposa covardemente abandonada, diz ela, “Nós mulheres sempre estamos sós.”. É como se as mulheres fossem condenadas ao abandono. Sabemos que não é bem isto. As mulheres merecem um destino à altura do seu papel. Portanto, nada de vitimismo. São apenas duas mulheres expondo suas fraquezas para se tornarem fortes. Ressignificam a vida a partir dos escombros. E esta é a grandeza poética do filme.

Apenas mais duas observações. A cena do parto é estrondosamente poética e pungente. Não vamos descrevê-la aqui, ficaremos somente nos adjetivos, deixando que o espectador, por conta, assista e tire suas conclusões. Se Ingmar Bergman ainda estivesse vivo e assistisse à cena, aplaudiria de pé. Com urros. Aliás, em vários momentos do filme vemos respingos de Bergman em Cuarón.

E por fim, a construção do personagem Fermin (Jorge Antonio Guerrero), namorado de Cleo. Temos aqui, tirando, claro, a protagonista Cleo, o personagem mais bem construído do filme, sintetizando a figura masculina nas suas mais podres e covardes atitudes, elevando a prevalência do macho quase à condição de mito. Com uma cacetada só, Cuarón revela mil anos de machismo.

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O poder do afeto

Por Antônio Roberto Gerin

O filme do diretor japonês Hirokazu Koreeda, ASSUNTO DE FAMÍLIA (121’), Japão (2018), apresenta em sua estrutura narrativa uma proposta moral que nos assusta e ao mesmo tempo nos encanta. Se observarmos a realidade através deste filme, vamos perceber que os comportamentos cotidianos e a moral que os enquadra e os define como certo ou errado andam bem separados. Como se fossem duas entidades estranhas, que não se falam nem se completam. Afinal, será que existe mesmo ladrão bom, afetuoso, emocionalmente honesto? Executivo de terno e gravata que exiba comportamentos para lá de condenáveis, portanto, um ser engravatado, mas perigoso? Se nos ativermos à lógica socialmente construída, vamos reagir a estas possibilidades. Ora, como pode um executivo ser mal e um ladrão, inofensivo? É o que o filme nos mostra, de uma forma surpreendentemente delicada. Maus e bons podem estar em lugares onde menos esperamos. Esta contradição por si só já torna o filme interessante. Mas para que a inversão de polos proposta por Hirokazu Koreeda funcione, é preciso que o filme nos comova e nos convença, pois, do contrário, poderá resvalar para o didatismo. Por sorte, o filme comove, e muito. E traz, principalmente na sua atmosfera narrativa, uma bala na agulha que é certeira. Assunto de Família é um belo tratado sobre o afeto. E é exatamente do afeto que ele se alimenta. E nos alimenta.

O filme nos mostra a vida cotidianamente normal de uma família de seis membros vivendo na periferia econômica de uma grande cidade do Japão. É uma família com todos os ingredientes. A mãe, Hatsue Shibata (Kirin Kiki), que não pode ter filhos, o marido e pai, Osamu Shibata (Lily Franky), que vive de bicos e prefere ensinar os filhos a praticarem pequenos furtos, e, lógico, a avó, a matriarca Nobuyo Shibata, que não é mãe nem avó legítima de nenhum dos membros da família, mas que está profundamente ligada a cada um deles, sendo seu sustento financeiro e afetivo. E os três filhos. Uma que já é moça, Aki Shibata (Mayu Matsuoka), e trabalha expondo seu corpo para voyeurs, o menino, Shota Shibata (Jyo Kairi), que junto com o pai furtam produtos de supermercados com o simples objetivo de levarem comida para casa, e o  terceiro filho, a menininha Yuri, a última a ser “adotada” e cujo processo de integração à família adotiva é o mote principal do filme, em torno do qual giram todos os pequenos fatos que compõem este belíssimo mosaico de relações espantosamente saudáveis, mesmo que funcionando ao abrigo das contravenções. Todos, de uma forma ou de outra, são desajustados e disfuncionais. Agora, coloque-os todos juntos, sob um mesmo teto, e, pasmem, terão uma família feliz e harmônica.

O filme inicia-se justamente no momento em que Osamu e seu filho Shota praticam mais um dos seus roubos em supermercado. Voltando para casa, deparam-se com a menina Yuri, sozinha em sua casa, desamparada e faminta. E reconhecidamente vítima de abusos físicos e psicológicos por parte dos pais. Como se fosse um produto de supermercado, eles a pegam e a levam para casa. Os outros membros, mesmo diante de frágeis argumentos contrários, acatam naturalmente a ideia de que a menina faça parte da família. E assim se estabelece o propósito do diretor. Ao nos contar a trajetória de Yuri na convivência com os Shibatas, ele vai mostrando as dinâmicas afetivas de uma família japonesa pobre, desajustada, mas surpreendentemente humana.

Para executar seus propósitos, o diretor tem o apoio de um roteiro consistente, de sua autoria, a fotografia é favorecida por enquadramentos calmos e fixos, e, acima de tudo, as atuações primorosas do elenco, com destaque para a atriz Sakura Andô, no papel da matriarca. Vale ainda destacar a habilidade com que a direção vai desfiando a trama, insinuando um fato aqui para depois explicá-lo ou revelá-lo lá na frente, e o faz sem estardalhaço, conduzindo o espectador para o desfecho final, que é quando a história de cada membro da família é dolorosamente revelada. E mesmo com as revelações, o forte elo que os une, presos pelo inquebrantável afeto, sobrevive. E sobrevive na magistral cena final, quando se encerra o filme com a menina Yuri olhando por cima do parapeito da sacada. O que é que ela busca com esse olhar? Só mesmo assistindo ao filme para saber.

Em suma. Para o belo filme Assunto de Família, família é tão somente um amontoado de pessoas, sem laços consanguíneos, que se amam. O resto é burocracia religiosa.

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O título Até que o Amor nos Separe não se trata de um título de peça de teatro, no caso, de texto teatral, trata-se, antes, do título do espetáculo que esteve em cartaz no Teatro Goldoni,  no mês de fevereiro, e agora retorna em nova temporada, no Teatro Brasília Shopping, nos dias 16, 17, 23 e 24 de março de 2019, e que reúne três esquetes teatrais de autoria de Antônio Roberto Gerin, sendo que estes esquetes se intitulam, na ordem, A Mulher do Marido, O Casamento do Marido e, encerrando o espetáculo, O Ciúme da Ciumenta. Já fica estampado de cara que, pelos títulos dos textos, temos uma temática em comum, que é falar das relações de casamento de casais que se digladiam entre o amor e o desamor, numa luta insana e perpétua, pelo menos perpétua enquanto durar o casamento. E não há indícios claros de que o casamento vá terminar. Talvez este seja o suspense que sustenta a agonia de relações prestes a se desmoronarem. Terminamos ou não terminamos? Não, ainda não é hora de fazer as malas. Ainda resta uma esperança. Que esperança? O amor. Ah, sim, o amor! Foi onde tudo começou, no amor, e mesmo que ele não mais exista – será? -, ele continua sendo uma miragem. Precisamos, para que o casamento não se desequilibre e caia no abismo, precisamos, sim, nos alimentarmos da ideia de que o amor pode reexistir. É uma chama invisível, mas que ainda não se apagou. Há, portanto, para o casal, a possibilidade de reacender esta chama. E é quando, reacendida a esperança, seja por uma fotografia, uma lembrança, um jantar, o casal poderá olhar para o casamento e ter a quase certeza de que o amor ainda resiste, se não para uni-los, pelo menos para evitar a separação.

Leivison Silva, como Cândida, e Alex Ribeiro, como Cornélio, em A Mulher do Marido, 2019.

São três os esquetes teatrais, como dito. O primeiro conta a relação de Cândida com seu marido Cornélio. Cândida fora abandonada pelo antigo noivo, Alberto, já que este se casa com Verônica, a melhor amiga da traída Cândida. Cândida então se casa com Cornélio, homem de índole boa, mas indeciso e de atitudes passivas. O esquete trata do momento em que Cândida vê seu desejo de vingança realizado. Alberto descobre que Verônica o trai, e após muita pancadaria, ele pede a separação. É quando Cândida telefona para o marido e o obriga a comprar duas garrafas de vinho para comemorarem, em dose dupla, a tão esperada notícia.

O Casamento do Marido, esquete de Antônio Roberto Gerin. Leivison Silva, como Poderosina, e Alex Ribeiro, como Crueldino, em 2019.

O segundo esquete traz Poderosina, uma mulher que sabe o que quer e não mede esforços para levar o jogo de poder às últimas consequências. E seu interesse é tão somente um. Manter o casamento. Para tanto, usa a tática de comemorar datas especiais como forma de reencontrar o perdido romantismo. Diante das rebeldias e grosserias do marido, Crueldino, que trata o casamento como se fosse o último dos infernos, Poderosina traz revelações inesperadas, o que impossibilita a Crueldino concretizar sua decisão de se separar.

Sentado Alex Ribeiro, como Sonsino, e em pé Leivison Silva, como Pacífica.

E o terceiro esquete. Sonsino, após mais uma noitada de cervejas com os amigos, e as amigas, entra em casa às duas horas da manhã e encontra a mulher, Pacífica, furiosa. Ela já sabe que no porta-luvas do carro do marido tem uma calcinha. Mas Sonsino não lhe entrega a chave do carro para que ela desça e se certifique da prova da traição. Sonsino nega tudo, até fotografia. Mas mesmo negando, recusa-se a entregar a chave. Por quê?

Não existe relação a um. E muito menos relação fracassada em que o culpado seja um. Se é relação amorosa, será sempre a dois, com os bônus e os ônus. Mas, pela cultura e por tudo que é milenar na relação homem e mulher, as diferenças de forças e de papeis estarão pré-estabelecidas. Óbvio, esse jogo se estende para todos os gêneros. Falamos aqui de homem e mulher por se tratar de casais héteros. A tônica do que se verá no palco não é essencialmente o machismo. E muito menos o empoderamento feminino. O que se verá é algo real, realíssimo, que é quando o homem e a mulher se fazem humanos, portanto, frágeis. É disto que trata o espetáculo. Na busca da felicidade, nos fragilizamos. A dois.

Cia de Teatro Assisto Porque Gosto

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