Assunto de Família

O poder do afeto

Por Antônio Roberto Gerin

O filme do diretor japonês Hirokazu Koreeda, ASSUNTO DE FAMÍLIA (121’), Japão (2018), apresenta em sua estrutura narrativa uma proposta moral que nos assusta e ao mesmo tempo nos encanta. Se observarmos a realidade através deste filme, vamos perceber que os comportamentos cotidianos e a moral que os enquadra e os define como certo ou errado andam bem separados. Como se fossem duas entidades estranhas, que não se falam nem se completam. Afinal, será que existe mesmo ladrão bom, afetuoso, emocionalmente honesto? Executivo de terno e gravata que exiba comportamentos para lá de condenáveis, portanto, um ser engravatado, mas perigoso? Se nos ativermos à lógica socialmente construída, vamos reagir a estas possibilidades. Ora, como pode um executivo ser mal e um ladrão, inofensivo? É o que o filme nos mostra, de uma forma surpreendentemente delicada. Maus e bons podem estar em lugares onde menos esperamos. Esta contradição por si só já torna o filme interessante. Mas para que a inversão de polos proposta por Hirokazu Koreeda funcione, é preciso que o filme nos comova e nos convença, pois, do contrário, poderá resvalar para o didatismo. Por sorte, o filme comove, e muito. E traz, principalmente na sua atmosfera narrativa, uma bala na agulha que é certeira. Assunto de Família é um belo tratado sobre o afeto. E é exatamente do afeto que ele se alimenta. E nos alimenta.

O filme nos mostra a vida cotidianamente normal de uma família de seis membros vivendo na periferia econômica de uma grande cidade do Japão. É uma família com todos os ingredientes. A mãe, Hatsue Shibata (Kirin Kiki), que não pode ter filhos, o marido e pai, Osamu Shibata (Lily Franky), que vive de bicos e prefere ensinar os filhos a praticarem pequenos furtos, e, lógico, a avó, a matriarca Nobuyo Shibata, que não é mãe nem avó legítima de nenhum dos membros da família, mas que está profundamente ligada a cada um deles, sendo seu sustento financeiro e afetivo. E os três filhos. Uma que já é moça, Aki Shibata (Mayu Matsuoka), e trabalha expondo seu corpo para voyeurs, o menino, Shota Shibata (Jyo Kairi), que junto com o pai furtam produtos de supermercados com o simples objetivo de levarem comida para casa, e o  terceiro filho, a menininha Yuri, a última a ser “adotada” e cujo processo de integração à família adotiva é o mote principal do filme, em torno do qual giram todos os pequenos fatos que compõem este belíssimo mosaico de relações espantosamente saudáveis, mesmo que funcionando ao abrigo das contravenções. Todos, de uma forma ou de outra, são desajustados e disfuncionais. Agora, coloque-os todos juntos, sob um mesmo teto, e, pasmem, terão uma família feliz e harmônica.

O filme inicia-se justamente no momento em que Osamu e seu filho Shota praticam mais um dos seus roubos em supermercado. Voltando para casa, deparam-se com a menina Yuri, sozinha em sua casa, desamparada e faminta. E reconhecidamente vítima de abusos físicos e psicológicos por parte dos pais. Como se fosse um produto de supermercado, eles a pegam e a levam para casa. Os outros membros, mesmo diante de frágeis argumentos contrários, acatam naturalmente a ideia de que a menina faça parte da família. E assim se estabelece o propósito do diretor. Ao nos contar a trajetória de Yuri na convivência com os Shibatas, ele vai mostrando as dinâmicas afetivas de uma família japonesa pobre, desajustada, mas surpreendentemente humana.

Para executar seus propósitos, o diretor tem o apoio de um roteiro consistente, de sua autoria, a fotografia é favorecida por enquadramentos calmos e fixos, e, acima de tudo, as atuações primorosas do elenco, com destaque para a atriz Sakura Andô, no papel da matriarca. Vale ainda destacar a habilidade com que a direção vai desfiando a trama, insinuando um fato aqui para depois explicá-lo ou revelá-lo lá na frente, e o faz sem estardalhaço, conduzindo o espectador para o desfecho final, que é quando a história de cada membro da família é dolorosamente revelada. E mesmo com as revelações, o forte elo que os une, presos pelo inquebrantável afeto, sobrevive. E sobrevive na magistral cena final, quando se encerra o filme com a menina Yuri olhando por cima do parapeito da sacada. O que é que ela busca com esse olhar? Só mesmo assistindo ao filme para saber.

Em suma. Para o belo filme Assunto de Família, família é tão somente um amontoado de pessoas, sem laços consanguíneos, que se amam. O resto é burocracia religiosa.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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