A General

O amor ao longo dos trilhos

Por Antônio Roberto Gerin

A GENERAL (89’), direção conjunta de Buster Keaton e Clyde Bruckman, EUA (1926), é um filme que pouco sucesso fez quando lançado nos Estados Unidos e mundo afora, mas que aos poucos foi conquistando com justiça seu espaço nas listas dos melhores filmes americanos de todos os tempos. A ponto de Orson Welles declarar, em 1971, ser A General “talvez o melhor filme que já foi feito”. Exagero ou não, fica-nos claro, ao assistirmos ao filme, estarmos diante de uma narrativa tão simples quanto pungente sobre um pedaço sombrio da história americana, a Guerra da Secessão, ocorrida entre 1861 e 1865. Buster Keaton trata com humor ora sutil ora convulsivo a relação do maquinista Johnnie com sua locomotiva General. E, de quebra, ironiza a necessidade de Johnnie de ter que provar para sua amada que, diante de um cenário de heróis a serviço de uma causa, ele também tem que vestir uma farda de soldado como prova de valentia. A forma singela com que o filme termina faz com que, sem nenhum sentimentalismo, nos lancemos naquele espaço em que acreditamos que lutar por algo pode sim ser uma fonte de felicidade. No caso de Johnnie e Annabelle, o amor pode se confundir com a história. Como, de fato, se confunde. Mas que, diante dos horrores e da destruição, o que sobrevive é apenas ele, o amor. Um primor de comédia! Que consegue ser sensível em meio à brutalidade dos canhões. Tudo graças a Buster Keaton, o Johnnie, com sua crença inabalável na capacidade do homem de superar a próxima dificuldade. Porque, com certeza, depois da próxima, virá a próxima… Afinal, a comédia não pode parar.

General é uma locomotiva que participou da Guerra Civil americana e teve seu momento de glória em 1862. Já no ano seguinte, suas peripécias foram registradas em livro por William Pittenger, história real que serviu de base para o roteiro do filme. Daí explicar a consistência e extrema funcionalidade da trama, exalando as tensões provocadas pela guerra e, dentro dela, pela luta solitária do maquinista Johnnie Gray para recuperar sua locomotiva roubada. Aliás, o filme pega velocidade a partir do momento em que o amor entre Johnnie e Annabelle se mistura à guerra. Ao saber que seu pai fora ferido no front, Annabelle embarca na General e vai à procura do pai. Logo adiante, a locomotiva é roubada, e a namorada, raptada. É a partir deste momento que o filme definitivamente alça seu vôo tensamente cômico.

A motivação dramática da narrativa é muito simples, e até óbvia. Mas forte o suficiente, naqueles tempos de heroísmos explícitos, para colocar nos trilhos, em avanço seguro e consistente, a trama do filme. Annabelle Lee (Marion Mack) passa a evitar o namorado Johnnie quando fica sabendo que ele não quis se alistar para defender os sulistas contra os avanços dos exércitos do norte. Passou a vê-lo como um covarde. E ela foi muito clara. Diz. “Não falo com você enquanto você não estiver de uniforme”. No entanto, envolvida na confusão da guerra, Annabelle desconhecia o que de fato havia acontecido. O Exército recusara o alistamento de Johnnie por entender que o maquinista seria mais útil para os sulistas pilotando sua locomotiva. Nós, espectadores, sabemos desde o início o que de fato ocorreu, a razão de Johnnie não ter se alistado. Mas os interessados, Johnnie e Annabelle, de nada sabem. E assim o quiproquó está armado. Ou melhor, é quando o roteirista entrega a condução da narrativa nas mãos do destino. Eis o sabor peculiar do filme.

O mal entendido vai sendo desfeito na medida em que o herói solitário, primeiro, salva Annabelle do rapto, e depois, juntos, recuperam a locomotiva. Mas não sem antes passarem por apuros e momentos de cômica tensão, onde cenas de pastelão escapolem de todos os lados da tela. E a narrativa chega a seus momentos mais angustiantes justo quando nos vemos torcendo pelo mocinho, fazendo com que suas trapalhadas – o personagem nos lembra uma mistura de Forrest Gump com Mister Bean – acabam quase que nos irritando, a ponto de querermos gritar: como é que pode ser tão trapalhão! Não podemos esquecer que estamos falando de Buster Keaton, à época, junto com Charles Chaplin, simbolizavam o auge da comédia dos filmes mudos. Mas diferente de Chaplin, Buster evitava o sentimentalismo e a exploração de trejeitos faciais. Seu rosto parece esculpido em cera. Mas, não é menos eloquente.

Enfim, o filme mostra, com certa clareza, o momento pelo qual estava passando o cinema americano, já atingindo sua maturidade artística, mas ainda limitado pela técnica. É perceptível a vontade que o espectador sente de ouvir as falas dos personagens. Elas parecem querer escapulir do silêncio da tela. De fato, sabemos que dali a algum tempo seria lançado o primeiro filme sonoro, O Cantor de Jazz, com retumbante sucesso. Pena. A General chegou um pouquinho adiantado. Tivesse o ansioso Jonhnnie acelerado um pouco menos sua famosa locomotiva, teria A General estreado no tempo exato para concorrer ao privilégio histórico de ter sido o primeiro filme sonoro. Não foi. E nem precisou ser. Ofuscada à época pelo burburinho do cinema sonoro, esta pequena obra prima do cinema acaba conquistando seu espaço definitivo na lista dos mais importantes filmes americanos. Bem à frente de O Cantor de Jazz. Podemos dizer que a empolgação de Orson Welles com o filme se justifica. E a silenciosa locomotiva, essa personagem de ferros e caldeiras, continuará nos trilhos por muito tempo, levando-nos a passear nossos olhos encantados pelas telas dos cinemas, das televisões, dos smartphones. À procura da General.

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Autor: Antônio Roberto Gerin

Autor de peças teatrais e diretor da Cia de Teatro Assisto Porque Gosto.

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